O depoimento é de Eusébio, 27, que mora em uma das muitas aldeias moçambicanas próximas à fronteira com a África do Sul. É uma área desolada e empobrecida. A maioria das pessoas se sustenta com pequenas plantações de milho e verduras. Mas Eusébio tinha outro plano em mente.
“Encontrei meus amigos para discutir como poderíamos escapar da pobreza. Decidimos caçar rinoceronte. Esperamos e assistimos aos movimentos dos guardas-florestais e, quando escurece, andamos longas distâncias, aonde os guardas raramente vão. Quando a polícia não está por perto, você pode matá-lo [o rinoceronte], mas ele tem que morrer no primeiro tiro, senão fica muito perigoso. Cortar o chifre é difícil, mas nós do campo estamos acostumados a cortar madeira com machetes.”
Em Moçambique, não há mais rinocerontes (o último foi morto dois anos atrás), então o destino de Eusébio era o Parque Nacional Kruger, na África do Sul, área selvagem onde os animais passeiam livremente. Ali está a maioria dos rinocerontes do mundo, o que torna o local atraente para caçadores.
No ano passado, um recorde de 1.215 rinocerontes foram abatidos na África do Sul, e 42 caçadores morreram em confrontos com a polícia – um conflito sangrento e crescente estimulado pela falsa crença, na Ásia, de que o chifre do rinoceronte cura câncer.
Valioso – Os caçadores geralmente agem em trios – um atira, um corta o chifre e o terceiro fica em alerta para o caso de autoridades aparecerem. Eusébio foi o atirador em suas quatro viagens bem-sucedidas ao Kruger, o que lhe rendeu cerca de US$ 10 mil (cerca de R$ 30 mil).
Isso é apenas uma fração do valor de um chifre de rinoceronte na Ásia, onde pode custar até US$ 250 mil (R$ 761 mil), vendido como cura para doenças e afrodisíaco.
Em gramas, esse valor é superior ao de ouro e diamantes.
Mas, para Eusébio, o dinheiro serviu para mudar suas três mulheres e filhos da cabana onde moravam para uma pequena casa de alvenaria, além de comprar algumas cabeças de gado e montar um bar.
Ele diz que não tem orgulho de caçar rinocerontes, mas argumenta que sua família poderia estar passando fome se não o fizesse. À medida que cresceu o número de rinocerontes mortos – de 13 em 2007 para mais de mil em 2013 e 2014 –, criou-se toda uma indústria de proteção ao animal.
Um exemplo é a Protack, a primeira de diversas empresas privadas de segurança que combatem caçadores na África do Sul.
“Temos gangues fortemente armadas vindo para matar”, diz o fundador da empresa, Vicent Barkas, que contrata guardas-florestais para reservas privadas na área do Parque Kruger. “Estamos ensinando nossos guardas a se proteger, o que infelizmente significa usar uma arma semiautomática, que pode potencialmente matar alguém.”
Patrulhas – O guarda-florestal Tumi Morema, que capturou mais caçadores do que qualquer outro, diz que sua mulher está convencida de que ele próprio será morto algum dia – seja por caçadores, seja por animais selvagens. E o risco o persegue.
“Eu recebo ameaças”, diz. “Nas ruas, me deparo com pessoas que dizem, ‘Tumi, vamos te matar’.” Apesar disso, ele diz que entende o que move os caçadores, além da pobreza e da cobiça.
“Anos atrás, não havia grades; daí os brancos vieram e colocaram grades. Agora, eles são donos dos animais, e os negros sentem que seu acesso à vida selvagem lhes foi negado”, afirma. “Então eles não respeitam isso. Eles se sentem roubados. Esse é o maior problema. É o que leva à caça clandestina.”
O jornalista moçambicano Lázaro Mabunda diz que até os policiais disputam para serem enviados a áreas próximas ao Parque Kruger, “porque ali a caça clandestina dá uma fortuna”.
“Os comandantes da caça ilegal praticamente neutralizaram as instituições de Estado”, afirma Mabunda. “É por isso que é difícil encontrar pessoas [condenadas por] caça ilegal de rinocerontes.”
O chefe do órgão de conservação de Moçambique, Bartolomeu de Soto, admite que o número de rinocerontes mortos está crescendo, mas alega que mais caçadores estão sendo presos e que o tema é prioritário para o governo. E, como leis regulatórias foram aprovadas apenas no ano passado, ainda não houve condenações pelo crime. Mas destaca que a pobreza – uma das causas da caça ilegal – não será erradicada tão cedo.
No outro lado da fronteira, o homem encarregado de pôr fim à matança de rinocerontes no Parque Kruger, o general Johan Jooste, diz saber que matar os caçadores não é a solução.
“Um caçador sempre virá no lugar do outro [que morrer], a não ser que você pegue o crime organizado, os chefões”, afirma. “É preciso dar esperança à comunidade, demonstrar que você tem controle sobre a rede criminosa e trazer benefícios de longo prazo. O futuro do parque está nas mãos das comunidades e de eles se beneficiarem da economia ligada à vida selvagem.”
Tratamento de rinocerontes – A maioria dos rinocerontes são mortos por seus chifres, mas alguns são dopados com tranquilizantes enquanto o chifre é removido. Como, então, tratar um animal mutilado dessa forma? Ninguém havia feito isso até agora.
“O maior desafio é o tamanho do animal e o fato de que há muito pouco cuidado posterior a ser tomado”, diz o cirurgião animal John Marais. “Temos que imobilizar o rinoceronte com ferimentos faciais a cada quatro semanas ao longo de um ano, o que cada vez é um risco para o animal e um fardo financeiro para o dono. Mas é algo que precisa ser feito para salvar a vida desses animais.”
Lion Den, uma rinoceronte que teve seu chifre e parte do rosto devastados com uma serra elétrica, foi abandonada pelos caçadores na mata com sangue jorrando de seus ferimentos. Para afastar as moscas, os veterinários cobriram as feridas com um curativo feito de fibra de vidro, mas Lion Den danificou-o quando se coçou. Outra solução teria de ser encontrada.
E ela foi bastante surpreendente: os veterinários decidiram preencher a ferida com material usado para placas dentárias, costurada com fio usado em tratamentos bucais e com supercola. Parte da pele da orelha de Lion Den foi removida e costurada em sua face. Até agora a técnica deu certo, e a rinoceronte está se recuperando lentamente no Centro Hoedspruit de Espécies Ameaçadas. Mas Lion Den estava grávida quando foi atacada, e perdeu o filhote.
Do lado dos caçadores, um dos 42 mortos na África do Sul no ano passado era o irmão mais novo de Eusébio, Sebastião. Ele deixou duas viúvas, dois filhos e pais devastados.
Até o ano passado, a caça não era crime em Moçambique, e ainda há resistência em interromper um comércio lucrativo.
“A polícia e os soldados trazem armas para que a gente cace”, diz o pai de Eusébio, Jeremiah. “Então, o primeiro passo é que o governo impeça-os de trazer armas da capital, Maputo, mas se as armas continuarem chegando aqui, nossos filhos continuarão a caçar, porque não têm outra coisa a fazer.” (Fonte: G1)
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