Zeca era um sujeito descompromissado. Não tinha parentes. Era solteiro. Mas sempre tinha uma mulher diferente em sua companhia. Apaixonara-se uma vez por uma mulher casada, que o correspondera, da qual se tornara um fiel cumbuco mas não se dera bem: o marido meteu-lhe uma bala nas costas, no exato momento em que fugia pulando o muro e ainda passou por ladrão de galinhas... Inculpação que sofreu em silêncio para não envolver a mulher do outro. Ao deixar o hospital, onde esteve morre-não-morre, jurou que não se envolveria mais em aventuras comborcianas. E cumpriu o juramento.
Na sua chácara situada no Beco do Salso, só entrava mulher absolutamente livre. Ali realizava seus bailes particulares regados a cachaça e cerveja. E muitas vezes a polícia teve de intervir para menter a ordem. Puxava uma gaíta sanfona de quatro baixos e uma “hilera”, que adquirira no vizinho país Uruguai e que depois perdera num daqueles bailes, quando um dos convidados a cortou ao meio com um golpe de facão. Nesses bailes, valia tudo mas sempre respeitando o “código moral”, firmado em pacifica jurisprudência da casa: “se a moça estiver acompanhada, ninguém tocará nela senão o acompanhante!”
Mas, como a lei está aí para se infringida, haveria de aparecer dentre os convivas de Zeca, alguém que violasse o “código”, de um só artigo... As arruaças, em que degeneravam as festas do velho Zeca, tinham aí, via de regra, a sua origem.
Acontecia que Zeca sempre manifestava o desejo supremo de morrer num baile, de preferência dançando uma valsa em desáfio. Entretanto, o seu falecimento ocorrera em circunstâncias diferente: caiu fulminado por uma parada cardiaca quando, oitovado num balcão de bolicho e bebericando pinga.
Todavia, os seus amigos entenderam desonroso para eles e para o defunto, não cumprir ainda que de modo incompleto, aquele desejo de uma última vontade. Se zeca não se extinguiu dançando uma valsa, eles a dançariam durante o velório.
Começaram de modo cerimonioso.
Pois estavam de sentimento.
Velando o amigo, que se despedia do mundo, e que algumas horas depois receberia nos sete palmos de uma cova cemiterial, os últimos adeuses, tinham que dar às danças um sentido ritual de velório.
Pois estavam de luto. E quando um sujeito está de luto, deve respeitá-lo, dançando devagarinho. E foi assim que iniciaram a derradeira homenagem.
O esquife no centro da sala sobre uma mesa, cadeiras arredadas para dar espaço, gaiteiro num canto tocando o instrumento em ritmo maneirado. Os pares movimentando-se em roda do caixão, todos em silêncio. A cachça correndo mansamente num copo comum, que passava de mão em mão.
Que tristeza!
E muito respeito.
Sobretudo muito respeito!
Quando porém, ali pelas quatro horas, a polícia atendeu ao chamado de vizinhos e lá chegou, não havia mais velório, mas uma farra das mais pesadas. O defunto tinha sido arredado para um lado, junto a “orquestra”, o pandeirista agitava o atavio de acompanhamento sentado sobre o caixão, as velas apagadas e no chão, a canha tomada na própria garrafa.
Foram todos recolhidos ao xadrez – uns vinte, vádios e vádias – e a casa fechada com o feretro dentro.
Autuados por embriaguez e desordem, cumpriram o trâmite processual de estilo. E advogado Aquilino, que se encarregara de justificá-los, fez a defesa global numa peça datilografada em papel pautado, invocando os antigos bacanais e engraçado paraleso entre Baco, “Deus do Vinho” e Zeca “Deus da cachaça”...
* da obra Advocacia Pitoresca – A. Juraci de Assis Machado – Livraria Editora Porto Alegre – 1978.
Wagner Sampaio é Advogado
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